Marcus Góes é um virtuose. Seus instrumentos são a crítica, a musicologia, a pesquisa, a biografia. Sua partitura, Carlos Gomes. Provavelmente o maior conhecedor, hoje, da vida e obra do criador do Guarany, Góes acaba de lançar seu terceiro livro a respeito: Carlos Gomes -- Documentos comentados (Algol, 411 páginas). Ele sucede às biografias que publicou em Belém em 1996 (Carlos Gomes –- A Força indômita, Secult) e em Milão no ano seguinte (Carlos Gomes –- Um pioniere alla Scala, Nuove Edizione).
Desta vez, como já diz o título, são reunidos e comentados contratos, cartas, bilhetes, fotos, processos judiciais e toda uma gomesiana perfazendo um arco do início da trajetória do músico em Campinas, no começo da década de 1860, ao fim da vida em Belém do Pará, trinta anos depois. Marcus Góes pôde colher boa parte desse material nos anos em que viveu na Itália.
Mas o valor documental não seria o mesmo sem o conhecimento profundo do tema acumulado por Góes. Lemos o livro quase como um romance detetivesco em que a personalidade, as etapas da vida, os percalços da profissão e o avanço de uma arte vão sendo desvendados com um luxo de minúcias em que a visão da árvore não encobre a floresta, pelo contrário.
Nessa trama que se vai traçando em forma de mosaico, Carlos Gomes surge como empreendedor intrépido, artista cheio de gana e inovador, homem problemático, brasileiro buscando sua afirmação num mundo de oportunidades e armadilhas.
Surgem diante de nós as condições de demanda, criação, produção e recepção de uma obra operística na Itália do fim do século XIX. Conhecemos um pouco do mundo editorial dos Lucca e dos Ricordi, que rivalizavam no apoio aos compositores e na partilha do mercado.
E mais: Vemos as reiteradas manifestações do temperamento carente, impulsivo e imprevidente do compositor. Acompanhamos a desgraça da morte de três dos seus filhos e a glória de ter sido o compositor de óperas mais representado no Scala de Milão, na década de 1870, depois de Verdi. Entramos na intimidade do estilo e da seiva musical de cada uma de suas produções. Somos lembrados de sua importância e influência no panorama lírico italiano e internacional da época. Descobrimos que Gomes escrevia muitas cartas para manter vínculos profissionais e pedir ajuda, mas nunca ou raramente para falar de sentimentos ou de música. Que acreditava em indicações detalhadas de nuance em suas partituras, mas não que elas pudessem passar sem um intérprete de talento (“A música [...] não é mais que papel borrado. A expressão não se escreve...”, dizia em carta a Francisco Braga).
Tudo no estilo fluido e agradável de alguém que fala de um ponto de intimidade. A seguir, uma entrevista com Marcus Góes, que no próximo dia 28 de abril lançará seu livro no Arte Doce Hall, em Belém do Pará, às 20h, com recital em que a soprano Leila Guimarães cantará canções e trechos de óperas de Carlos Gomes:
- Seus livros têm corrigido muita coisa na imagem às vezes distorcida de Carlos Gomes. Como traçaria hoje um perfil sucinto do homem, mais que do compositor?
M. G.: Carlos Gomes era um caipira paulista. Nunca se desligou psicologicamente de sua maior paixão, que era a sua Campinas natal. Gostava mesmo de pescar lambari no riachão, de curau e pamonha. Adorava uma barganha. Caipira paulista que se preza não ama loucamente a mulher, mas a tem como companheira, cozinheira, mãe de seus filhos. Transferido para uma terra em tudo e por tudo diferente da sua, Carlos Gomes foi sempre um centauro meio artista famoso (e o foi) meio caipira do interior paulista. Essa dualidade o marcou sempre, e foi causa de certa vacilação e indefinição de personalidade, de alguma indecisão em seus propósitos, de muita desconfiança dos outros e de si mesmo. Marcou até sua música.
- Que influência podem ter tido em sua produção os problemas de instabilidade e dependência emocional, o comportamento imprevidente e perdulário descrito em seu livro, a ambivalência entre um Brasil que deveria protegê-lo e uma Itália que não o consagrava categoricamente como filho adotivo? Havia um elemento de imaturidade não resolvida em sua personalidade?
M. G.: Todo brasileiro que mora muitos anos no exterior é atingido por um sentimento de falta, de não presença. Alguém nascido na Argentina urbana de Buenos Aires não é atingido tanto por esse sentimento, pois a Argentina de Buenos Aires é uma Europa transplantada. Mas imagine um índio dos altiplanos bolivianos com aquele chapeuzinho de coco e aquela flautinha morando em Milão. Carlos Gomes era como esse índio, só que aculturado por manhas do destino e marcas de educação e meio familiar dentro da ópera italiana.
- Carlos Gomes se achava um criador insuficientemente amparado, em particular pelos compatriotas? Daí é que viria uma tendência à fixação, aqui no Brasil, de uma imagem de injustiçado?
M. G.: Anos atrás, estive na Rádio MEC do Rio para falar sobre o compositor. As entrevistadoras só perguntavam sobre um Carlos Gomes infeliz, pária do destino, escorraçado e abandonado. Em dado momento, perguntei-lhes se não achavam que a glória de ter sido autor da primeira revista musical italiana -– Se sa minga --, se a suprema glória de ter sido, durante a década de transição do melodrama italiano de Rossini, Bellini, Donizetti e Verdi para o verismo de Mascagni, Puccini e Leoncavallo, o compositor de óperas italianas mais representado na Scala de Milão, depois de Verdi, não era o bastante para que elas o considerassem um vitorioso, um felizardo. Carlos Gomes foi um homem de ação, ativo e produtivo, mas longe do “ciel di Parahyba”, o que era sua tristeza e seu ônus maior. Achava-se pouco amparado, sim, mas no fundo se orgulhava de, com sua arte, ter o que tinha, ser proprietário de uma linda villa e ser chamado quarenta vezes ao proscênio depois de récitas de alguma ópera sua.
- À parte esse paradoxal ufanismo brasileiro que identifica o gênio e lamenta a falta de reconhecimento no mundo, qual a verdadeira fortuna crítica de Gomes no cenário internacional?
M. G.: Em sua época ele foi um enfant gaté no mundo da ópera na Itália. Foi o compositor de óperas italianas que mais criou óperas na Scala na década que começou em 1870!! Foi o único compositor nascido em solo americano a ser realmente conhecido em todo o mundo. Vivo ainda, suas óperas foram encenadas na Itália, Brasil, França, Alemanha, Inglaterra, Espanha, Portugal, Polônia, Rússia, Argentina, Cuba e vários outros países. Hoje, Carlos Gomes é citado e conhecido na musicologia internacional, e célebres musicólogos e críticos o põem em lugar de destaque na transição já referida, como inovador e desbravador de caminhos, como Julian Budden, Marcello Conati, Giampiero Tintori, Giancarlo Landini, Sergio Segalini, Luigi Inzaghi. Regentes lhe gabam o gênio, como Marco Balderi, Corrado Rovaris, Luigi Ferrari. No passado, regentes, compositores e musicistas como Mascagni, Gino Marinuzzi, Miguel Fleta, Caruso, Gigli, Mario Del Monaco o louvaram e elogiaram sem reservas. Hoje, Carlos Gomes não tem popularidade internacional, e só no Brasil, e em certos meios musicais sofisticados, é consumido como prato raro, refinado, digno de experts. No momento, há o início de uma “Gomes rennaissance” da qual em parte o redator destas linhas é responsável.
- Você afirma que foi com o fracasso de Maria Tudor em 1879, no Scala de Milão, que mais claramente se caracterizou um certo chauvinismo da crítica e do meio musical italianos em relação ao “estrangeiro” Gomes. Essa reação teve outras manifestações?
M. G.: Sim. Uma parte da imprensa italiana passou a hostilizar não só Carlos Gomes, mas Wagner, Meyerbeer, Massenet. A reação foi incrementada pelo procedimento de Carlos Gomes em sua vida particular. Foi em 1879 que ele separou-se da mulher em rumoroso e virulento processo judicial. Foi em 1879 que seu filho Mario Antonio morreu, em parte vítima da imprudência de Carlos Gomes. No clube das celebridades da música na Itália daquele tempo, os membros deveriam ser discretos, elegantes, refinados. E Carlos Gomes não o foi nem na separação, nem nos outros acontecimentos de sua atribulada vida de centauro lombardo-campineiro.
- Um capítulo pouco conhecido da produção de Carlos Gomes são as obras de teatro musicado –- Se sa minga e Nella Luna -- com que começou no meado dos anos 1860 sua ascensão na cena lírica italiana. Em que contexto elas surgem?
M. G.: Em 1855, Offenbach assume as Bouffes Parisiennes, e em 1858 faz estrear Orphée aux enfers. Em 1864, cria La belle Hélène. Essas duas obras causaram furor em todo o mundo, merecendo duzentas, trezentas representações por ano em cada grande cidade. No Rio de Janeiro, eram os espetáculos de maior público, e mereciam paródias como Orfeu na roça e Abel e Helena. Milão, capital da música e da vida teatral italianas, não ficou fora da moda, e logo procurou ter as suas operetas, vaudevilles, revistas musicais e suas Bouffes. Os teatros Fossati e Carcano (até hoje existentes) abrigaram então aquelas obras de Carlos Gomes, compostas em admirável e miraculoso estilo parisiense à moda de Offenbach. Carlos Gomes era na época disponível, competente, jovem, perseguidor do sucesso. Se sa minga é a primeira revista musical italiana, e o primeiro grande sucesso da carreira de Carlos Gomes, muito pouco encarado como tal por seus biógrafos. Sua partitura é de extrema originalidade e boa fatura.
- Quais as características das óperas de Gomes que o distinguem como elo entre a música do melodrama de Rossini, Bellini, Donizetti e Verdi e a da giovane scuola’de Puccini, Mascagni, Leoncavallo?
M. G.: Carlos Gomes, em Il Guarany, começa a adotar os princípios fundamentais a serem seguidos no melodrama italiano, apregoados pelos jovens intelectuais, Boito à frente :
1) adequação maior da ação à palavra; não seria mais admitido aquele velho hábito operístico em que o coro canta “corriam” e todos ficam parados por meia hora no palco, nem o trovador dizendo que corre a salvar a mãe da fogueira estático no palco por vinte minutos;
2) maior uso do cromatismo;
3) adequação maior da música à palavra; era muito comum, nas óperas italianas, a existência de certos trechos que poderiam tanto servir de marcha festiva como a tristes funerais; o tenor cantava “estou morrendo” com música alegre em 3/4;
4) abandono dos números fechados, como recitativos, árias e cabalettas;
5) maior fragmentação e maior continuidade do discurso musical. Tudo isso vinha das idéias de Richard Wagner, admiradíssimo pelos jovens intelectuais da scapigliatura milanesa. No Guarany, Carlos Gomes não usa recitativos nem cabalettas, dá continuidade ao discurso musical, procura maior adequação da música à palavra. Na Fosca, cria novas escalas cromáticas, novos intervalos melódicos dissonantes, novas terminações de frases e novos saltos imprevistos da região aguda à região grave da voz e vice-versa. Cria a figura da “attrice cantante” e encadeia o discurso musical, ligando as peças.
- Mais que um traço de união, você enfatiza as qualidades inovadoras da música de Carlos Gomes. Quais são elas?
M. G.: Além do que já expus, e como característica fundamental das composições de Carlos Gomes, em toda a sua obra é facilmente reconhecível o uso de ritmos, maneiras, acabamentos, harmonias típicos da música brasileira de salão de meados do século XIX, com a modinha à frente. Certos desavisados retrucam “ah, mas a modinha não é uma forma musical definida”, como se ela não possuísse um modus próprio, um sabor característico. Principalmente estrangeiros têm dificuldade de entender isso.
- Quais as influências que exerceu?
M. G.: Carlos Gomes exerceu todo tipo de influência. Todos os compositores da Itália da época queriam ser parecidos com aquele estrangeiro que punha suas óperas no Scala para fulgurantes 20 ou 25 récitas. Todos começaram a copiar aquelas escalas cromáticas, aqueles saltos imprevistos, aqueles intervalos, aqueles ritmos. O maior copiador foi o grande amigo de Carlos Gomes, Amilcare Ponchielli, autor de La Gioconda, que é toda calcada nas composições anteriores de Carlos Gomes. Ponchielli era professor de Mascagni e Puccini, e aí se pode entrever o claro elo que há entre Carlos Gomes e os veristas.
- Dos documentos coligidos em seu livro, qual ou quais considera mais raro(s) e/ou revelador(es)?
M. G.: Morando na Itália, tive acesso a arquivos nos quais pude desencavar os contratos de Carlos Gomes para suas óperas, os autos do processo de sua separação da mulher, os manuscritos de algumas obras e muita coisa inédita. Mas o mais raro foi encontrar na Itália os únicos parentes, embora indiretos, de Carlos Gomes que lhe cultivam a memória como parentes. E poder fotografar em poder deles até a mobília que guarnecia a casa de Carlos Gomes em Milão, e que foi herdada em sucessão.