Quando nos vem à mente o significado da palavra “irmão”, de pronto, ligamos essa palavra à noção de companheirismo, no mais elevado nível desse conceito; identificamos também, a noção de amor alimentado por laços de união familiar e, finalmente, juntamos a tudo isso um enorme respeito e inabalável confiança. Ser irmão é ser vinculado a outro alguém por profundas raízes, por fatos vividos em conjunto, por confidências, traquinagens, risos e lágrimas, fraternalmente compartilhadas. José Pedro de Sant’Anna Gomes (1834 – 1908) foi o irmão mais velho que Antonio Carlos Gomes precisava para cumprir seu grande destino. Unidos também pelo amor à Música, dádiva que generosamente lhes fora legada pelo rigoroso pai, Manoel José Gomes, eram “gêmeos” nascidos com dois anos de diferença. Ao longo da história, em todas as latitudes deste nosso pequeno grande planeta, muitas histórias houve de irmãos que se notabilizaram por conquistarem unidos, acumpliciados, o sucesso. Assim podemos lembrar, em anos recentes, as histórias dos irmãos Villas-Bôas, sertanistas e desbravadores do Brasil indígena; dos irmãos Marsalis, grandes músicos e instrumentistas do jazz americano; dos irmãos Grimm, dos contos infanto-juvenís que marcaram a literatura mundial; dos irmãos Dick e Cyl Farney, artistas brasileiros da música, rádio e cinema, de que todos se lembram... e muitos outros.
Os irmãos Juca e Tonico, como se tornaram conhecidos desde crianças, estavam fadados a cumprirem um itinerário que sempre os manteve juntos, embora a partir de certo momento de suas vidas, acabassem separados geograficamente. Enquanto Tonico se projetava primeiro ao Rio de Janeiro e, logo a seguir, a Milão, na Itália, o pressuroso e inspirador mano Juca ficava na Vila de São Carlos a conduzir e aconselhar o irmão, mesmo à distância, confirmando-lhe sempre que ele, Tonico, tinha a vocação, o talento e a atitude, capazes de fazê-lo galgar os mais elevados degraus da Música. E como, de fato, viria a se concretizar.
Foi Sant’Anna Gomes, pelos relatos de seus biógrafos e historiadores da época, quem conhecia o potencial musical do irmão, Carlos Gomes, e o estimulava a se apresentar onde vislumbrasse possibilidades. Ao lado dele, irmão mais velho, é que o Tonico percorria salões em casas senhoriais, sítios e fazendas da região, para fazer música e exibir-se, primeiro, como instrumentista talentoso e cantor de boa voz, depois como compositor de modinhas e canções ao gosto comum das pessoas, e também, na esfera mais erudita, como autor de Missas, oratórios e páginas para piano, clarineta ou cordas.
Graças à fé que Sant’Anna Gomes dedicava a seu irmão, como se já lhe antevisse o futuro glorioso, é que empreendeu junto com Carlos Gomes a viagem até São Paulo. Ele e Tonico deviam ter conversado a miúde sobre o que a capital da Província poderia significar em termos de oportunidade. Com a amizade que sabiam cativar junto a outros jovens estudantes, Sant’Anna Gomes e o irmão foram acolhidos pelos acadêmicos de Direito, de São Paulo, e incentivados em seus dons musicais, não sendo difícil imaginar-lhes as tantas serestas, libações boêmias, saraus e serões musicais, que naturalmente criaram e estreitaram laços de amizade e inspiraram momentos cheios de idealismo como se escuta no Hino Acadêmico (Sois da Pátria a esperança fagueira, / Branca nuvem de um róseo porvir; Do futuro levais a bandeira, / Hasteada na frente a sorrir. Mocidade, eia avante, eia avante! / Que o Brasil sobre vós ergue a fé; Este imenso colosso gigante / Trabalhai por erguê-lo de pé!)...
José Pedro de Sant’Anna Gomes possuía, àquela altura, os mesmos conhecimentos musicais de Carlos Gomes, já que ambos freqüentaram o mesmo sisudo e disciplinador mestre, o pai Maneco Gomes. E, certamente, Sant’Anna – por ter dois anos a mais que o irmão – poderia até ter se desenvolvido mais como violinista dotado que era. Mas, Juca sabia que o Tonico de Campinas possuía uma vocação e imaginação musicais mais que espontâneas. Ele acompanhara de muito perto, como somente um familiar é capaz de fazê-lo, a esperteza e verve criativa do jovem irmão que, já naquele momento, extraía sem nenhum esforço pequenas jóias como as modinhas “Quem sabe?!” e “Suspiro d’Alma”, e a peça para clarineta e piano, “Alta Noite”, que executaria com seu amigo Henrique Luiz Levy. E, assim, contando com o encorajamento de outros acadêmicos que comungavam da mesma tese, a de que Carlos Gomes deveria tentar a sorte em centros musicais mais avançados, Juca impulsionou-o rumo ao Rio de Janeiro e à Corte Imperial.
Chegando a esse novo ambiente, cultivador há algum tempo da tradição musical dos grandes mestres, ali Carlos Gomes colheu suas primeiras consagrações, ao ser apoiado por membros da Realeza e pelo Conservatório Nacional, por mestres que continuaram a lapidar-lhe o talento artístico, como Francisco Manuel da Silva e Gioachino Giannini.
Após os sucessos das óperas ‘’A Noite do Castelo” e “Joana de Flandres”, o jovem Gomes conquistaria de vez o beneplácito de Dom Pedro II e seria, mais uma vez, catapultado para outra grande urbe cultural, Milão, onde se sediava o Teatro Alla Scala, sagrado palco onde somente vultos sagrados como Verdi, Donizetti, Rossini e Bellini pontificavam.
Sant’Anna Gomes, após despedir-se emocionadamente do mano Tonico, que rumava de São Paulo para Santos, retomou o caminho para a Vila de São Carlos, onde acompanharia sempre com fidelidade e dedicação, os passos do predestinado jovem. Quando Carlos Gomes experimentava dificuldades, aqui estava o prestativo Sant’Anna Gomes para mobilizar a tudo e a todos e acudir as carências de seu protegido. Respaldou pessoalmente com vultosos recursos financeiros a montagem da ópera “Il Guarany”, aquela que consagraria Carlos Gomes e firmaria sua posição entre os mais inspirados compositores da época, na Itália. Sempre dedicou ao Tonico o estímulo mais oportuno, a palavra mais animadora e energizante, jamais permitindo que ele desistisse de seus sonhos. Muitos foram os momentos em que Carlos Gomes esteve a ponto de desistir e retornar a Campinas, porém a evocação da fé que Sant’Anna lhe tributava o manteve firme em seu intento. Em cartas Carlos Gomes demonstra sua sincera gratidão para com o mano Juca e inclusive, dedica-lhe a ópera “Fosca”, num testemunho da importância por ele exercida em sua gloriosa trajetória.
Artistas e estudiosos da obra e vida de Antonio Carlos Gomes concordam em um ponto: talvez se não tivesse havido Sant’Anna Gomes, não haveria também Carlos Gomes. Equivale a dizer que o irmão José Pedro de Sant’Anna Gomes desempenhou um papel fundamental na biografia de Carlos Gomes, descortinando todo o seu talento, visionariamente antecipando até onde poderia chegar e, com grande desprendimento e amor fraternal, assentiu em pavimentar-lhe o caminho, ofereceu-lhe os recursos de que necessitava, morais e materiais e, generosamente, repercutiu os seus feitos em Campinas, regendo a música gomesiana como brilhante maestro que foi, sem descuidar de sua própria produção como compositor.
O músico e maestro Sant’Anna Gomes constituiu para a Música em Campinas um importante papel de edificador e consolidador, ao ensinar e formar músicos, ao arregimentar e reger bandas e orquestra de óperas e operetas, ao animar a vida cultural da progressista cidade, deixando sua marca pessoal em nossa história artística, tão profundamente quanto seu pai, Maneco Músico, quanto Carlos Gomes e outros seus descendentes conseguiram fazer. Glória, portanto, a Carlos Gomes, mas também um justo e enternecido preito e homenagem a José Pedro de Sant’Anna Gomes, um irmão como raros.
Alcides Ladislau Acosta, tenor, fundador e presidente da ABAL – Associação Brasileira Carlos Gomes de Artistas Líricos.