Três injustiças na vida de Carlos Gomes

Primeira grande injustiça: os republicanos

Carlos Gomes foi estudar na Europa com apoio pessoal do Imperador Dom Pedro II. Além de uma ajuda financeira o Imperador, extremamente culto e bem relacionado com o meio cultural europeu, abriu caminho para o jovem músico não só através de meios financeiros mas por meio de cartas de recomendação. A estreia brasileira de sua ópera mais conhecida, Il Guarany, no mesmo ano da estreia europeia, foi um grande êxito para o império brasileiro, e sua ópera Lo Schiavo (O escravo) foi dedicada à princesa Isabel em 1887, pouco antes de ela ter assinado a Lei Áurea. Quando a república foi proclamada em 1889 a situação de Carlos Gomes ficou bem incômoda frente aos novos governantes. Esta guinada política coincide com o início da doença que iria lhe tirar a vida. Os militares republicanos recusaram oferecer a ele a direção do Conservatório de Música do Rio de Janeiro, sendo que sua única opção foi aceitar um cargo em Belém do Pará, cargo este que nem chegou a ocupar formalmente, visto que a doença o matou logo depois de sua chegada ao Pará em 1896. A maneira sórdida como os sórdidos implantadores da república o tratou foi a primeira grande injustiça que sofreu, ainda em vida, nosso maior compositor do romantismo musical.

Segunda grande injustiça: os modernistas

No magnífico livro “Carlos Gomes – Um tema em questão: a ótica modernista e a visão de Mário de Andrade” do maestro Lutero Rodrigues (Editora Unesp) podemos tomar contato com a maneira que os artistas paulistas viam a obra de Carlos Gomes. Pouco antes de acontecer a “Semana de Arte Moderna” de 1922 Oswald de Andrade publicou um longo texto com as seguintes ofensas ao compositor: “Carlos Gomes é horrível.(…)De êxito em êxito, o nosso homem conseguiu difamar profundamente o seu país, fazendo-o conhecido através dos Peris de maiô cor de cuia e vistoso espanador na cabeça, a berrar forças indômitas em cenários terríveis”. Cito apenas uma pequena parte do que Oswald de Andrade escreveu a respeito. Ele chama a arte de Gomes de “inexpressiva, postiça, nefanda…”, e estas opiniões abalaram de forma decisiva o prestígio do compositor. Em 1936, o centenário do nascimento do músico foi comemorado como uma espécie de resgate do “Estado novo”. As punhaladas que Mario e Oswald de Andrade deram no compositor foram minimizadas. Numa época em que as óperas de Carlos Gomes eram montadas com frequência, tanto no Brasil como no exterior, fizeram destes raivosos comentários uma coisa vista como meras excentricidades.

Terceira injustiça na vida de Carlos Gomes

Se os republicanos decretaram o ostracismo de Carlos Gomes, se os Modernistas o chamaram de vergonha nacional, o meio musical brasileiro dos dias de hoje comete uma injustiça tão grande como as duas já citadas. A obra de Carlos Gomes é raramente executada. Exemplo disso é nossa melhor orquestra, a OSESP, que simplesmente ignora o grande compositor. Na recente excursão europeia a orquestra, que brilhou executando a Primeira Sinfonia de Mahler, executou como abertura em diversos concertos um arremedo sem graça em cima do hino nacional composto por uma autora mais ligada à música popular. Por que não abrir o concerto com páginas sinfônicas de grande beleza e efeito do compositor campineiro como a “Alvorada” da ópera Lo Schiavo, ou a abertura de Il Guarany? O famoso maestro italiano Giusepe Sinoppoli (1946-2001), por exemplo, costumava abrir alguns concertos na Alemanha com as aberturas das óperas “Fosca” e “Il Guarany”, coisa raramente feita aqui. As partes orquestrais das óperas menos conhecidas do compositor (Maria Tudor, Condor) estão se desfazendo, e em breve não será mais possível executá-las. Nas décadas de 50,60, 70 e 80 o Theatro Municipal do Rio de Janeiro e o de São Paulo executavam com frequência as óperas do mestre, e artistas internacionais como o tenor Mario del Monaco e o soprano Antonieta Stella mantinham Il Guarany e Lo Schiavo em seus repertórios. Isto tudo virou passado. Em São Paulo havia um maestro que defendia com unhas e dentes a obra de nosso conterrâneo: Armando Belardi. A convicção com a qual ele dirigia as obras de Carlos Gomes não sai de minha memória. O famoso tenor espanhol Plácido Domingo se interessou pela obra mais conhecida do compositor, Il Guarany, mas mesmo com ele cantando exemplarmente a gravação que ele realizou não decolou pela falta de comprometimento da equipe. Se a obra se chama “ópera ballo” por que cargas d’água cortaram o ballet, uma das páginas mais interessantes da obra? Aliás, mesmo com condições técnicas inferiores é bem preferível a gravação feita em 1959 em São Paulo com a impecável e comprometida regência de Armando Belardi e com a participação da eterna Niza de Castro Tank. Aliás, vale a pena ressaltar que junto ao Theatro Municipal de São Paulo há um belíssimo monumento homenageando o compositor, mas este mesmo teatro não monta uma obra de Carlos Gomes há décadas. O Theatro Municipal do Rio de Janeiro, que já montou obras importantes do autor, encontra-se de tal forma sucateado que também não monta nada do compositor há muito tempo.

Fonte: Maestro Osvaldo Colarusso, em sua coluna “Falando de Música”, no jornal Gazeta do Povo, em 28/10/2013